sábado, 27 de março de 2010


Texto original:

"Amanhã faz um mês que a Senhora está longe de casa. Primeiros dias, para dizer a verdade, não senti falta, bom chegar tarde, esquecido na conversa de esquina. Não foi ausência por uma semana: o batom ainda no lenço, o prato na mesa por engano, a imagem de relance no espelho.
Com os dias, Senhora, o leite primeira vez coalhou. A notícia de sua perda veio aos poucos: a pilha de jornais ali no chão, ninguém os guardou debaixo da escada. Toda a casa era um corredor deserto, até o canário ficou mudo. Não dar parte de fraco, ah, Senhora, fui beber com os amigos. Uma hora da noite eles se iam. Ficava só, sem o perdão de sua presença, última luz na varanda, a todas as aflições do dia.
Sentia falta da pequena briga pelo sal no tomate — meu jeito de querer bem. Acaso é saudade, Senhora? Às suas violetas, na janela, não lhes poupei água e elas murcham. Não tenho botão na camisa. Calço a meia furada. Que fim levou o saca-rolha? Nenhum de nós sabe, sem a Senhora, conversar com os outros: bocas raivosas mastigando. Venha para casa, Senhora, por favor." (Apelo, Dalton Trevisan)


Resposta:

As meias, senhor, as meias eu vou ensinar como se costuram. Primeiro, é preciso alinhavar o tempo. Achar a ponta mais longe e desfazer os embaraços, partindo do fim para o começo. Eu já estava no ônibus quando hesitei, quando desci no primeiro ponto que a agulha desfez entre nós. Subi as escadas em caracol, tentando cerzir a nossa fazenda já estampada de flores tão murchas e, por mais um instante, voltei para casa, senhor. Olhei a casa, senhor.

Uma camisa jogada no chão, de braços abertos. Meu apelo em cada canto do quarto. O batom, o vestido. A meia encolhida, sem par. A rede pendurando, solitária, um sorriso na varanda. À espera de um outro sorriso, talvez. Mas o sorriso, na borda da xícara, o senhor esqueceu. A alça sem os laços do seu dedo. Minhas mãos na cintura. Nós dois rodopiando pela sala, em voltas que a cera apagou. E que devem ser as voltas dessa agulha, - essa que ensina a costurar um tecido ferido, senhor.

Depois, é preciso desatar as linhas. As linhas que o senhor me escreveu nessa carta, e me trouxe a essa casa um mês depois. Então era isso senhor? O leite coalhado? As teias de aranha costurando as fendas no teto? O saca-rolha perdido? A meia furada? A camisa sem botão... O botão sem a casa. A casa. A casa. A casa? O prato na parede. O jarro na parede. A estátua na parede. O relógio tremendo no chão. O ponteiro no cinco. O ponteiro no cinco. O ponteiro no cinco. Uma camisa de braços rasgados. O retrato em duas partes. Um grito alto. As mãos no colo, em abandono. Ouve agora o meu apelo, senhor?